Prosecco virou símbolo da crise entre freira brasileira e mosteiro italiano

A produção de prosecco artesanal como fonte de renda virou o símbolo de uma crise que culminou no afastamento de uma freira brasileira do Mosteiro Cisterciense dos Santos Gervásio e Protásio, no norte da Itália.
O prosecco e as freiras
Em dezembro de 2022, as freiras do Mosteiro Cisterciense dos Santos Gervásio e Protásio, no norte da Itália, lançaram um espumante do tipo Prosecco Superiore, com o rótulo oficial da instituição religiosa. Um mês depois, a primeira denúncia anônima contra a abadessa brasileira Aline Pereira Ghammachi chegou ao Vaticano.
A exposição causada pelo prosecco incomodou o alto clero, segundo a freira. Aline disse que a mídia em torno da bebida artesanal não foi bem vista pela liderança da ordem. "O abade criticou a exposição midiática, mas ser contra não torna algo ilegal", afirmou. Segundo ela, o abade-chefe Mauro Lepori declarou que ela "iria se queimar rápido" e que "os jornais só queriam entrevistá-la por ser bonita e simpática".
A produção do prosecco era parte de um plano de resgate financeiro, segundo a freira. O mosteiro enfrentava dificuldades desde a pandemia de covid-19 e buscava alternativas para manter a comunidade. A produção da bebida surgiu após a abertura da clausura papal e a transição, em 2017, para uma clausura constitucional, que permite maior interação com o mundo externo.
Produtos da floresta também geraram incômodo, segundo a freira. Aline introduziu no mosteiro itens ligados à biodiversidade amazônica, aproximando a missão religiosa de causas ambientais e do Brasil.
As mudanças marcaram sua gestão como abadessa. Eleita em 2018, aos 34 anos, ela foi a abadessa mais jovem da Itália. Segundo afirma, promoveu acolhimento a mulheres vítimas de violência, atividades com pessoas com autismo e transparência istrativa —o que teria despertado resistência interna e externa, na versão de Aline.
Denúncias provocaram oito inspeções em dois anos. Aline foi afastada em abril de 2025 e diz não ter tido o formal aos relatórios e nem direito de defesa. Ela foi acusada de maus-tratos, abuso de autoridade e desvio de recursos que, segundo ela, nunca foram comprovados, e as denúncias acabaram arquivadas. Na mesma semana do afastamento de Aline, 12 freiras deixaram o mosteiro —quatro delas registraram à polícia que haviam fugido de um ambiente insustentável.
Hoje, elas vivem em uma casa de campo com vinhedo e seguem produzindo a bebida. O local foi cedido por apoiadores. O grupo, ainda ligado à vida religiosa, tenta ser aceito por outra congregação. Apesar do ime, Aline afirma que não está pedindo dispensa dos votos religiosos. Para ela, o prosecco agora é símbolo de resistência.
Bebida ganhou nome e selo
O prosecco do mosteiro ganhou nome, selo e apoio institucional. Batizado de Prosecco Superiore DOCG di Abbazia, foi lançado oficialmente em 9 de dezembro de 2022 com uma tiragem inicial de 5 mil garrafas. Produzido com uvas Glera colhidas nas terras do mosteiro —cultivadas há mais de um século pelas próprias religiosas— o prosecco recebeu certificação como produto biológico. A apresentação ocorreu durante um evento realizado dentro da clausura, com presença de autoridades locais e do presidente da região do Vêneto, Luca Zaia, que descreveu a iniciativa como exemplo de sustentabilidade e identidade territorial.
A motivação para produzir a bebida foi financeira, mas o projeto ganhou contornos simbólicos. Segundo Aline Ghammachi declarou ao Corriere del Veneto, a comunidade foi pressionada a encontrar soluções após receber contas de gás de 20 mil euros (R$ 130 mil). "Tudo o que entrar com a venda do prosecco será usado para pagar as contas", afirmou. A produção tornou-se, assim, uma forma de garantir a sobrevivência da estrutura diante da crise energética europeia —e, ao mesmo tempo, reafirmar a lógica do "Ora et labora" (oração e trabalho) que orienta a tradição cisterciense.
A iniciativa nasceu de um encontro casual com a vinícola La Vigna di Sarah. A empresária Sarah Dei Tos, que já produzia vinhos na região, se surpreendeu ao descobrir que havia um vinhedo ativo dentro da clausura e se uniu ao projeto. "Este prosecco representa a história, a cultura e o senso de comunidade de Vittorio Veneto", disse ela ao Qdpnews. A parceria previu, inclusive, a abertura parcial da barchessa do mosteiro —uma ala rústica anexa usada para atividades de apoio— para visitas e degustações em datas específicas.
O que diz a Ordem Cisterciense
A Ordem Cisterciense publicou uma nota oficial no próprio site esclarecendo que o caso foi acompanhado de perto desde 2023. Na época, foram realizadas visitas extraordinárias devido a relatos de dificuldades na gestão e na convivência comunitária.
Posteriormente, o Vaticano determinou uma Visita Apostólica e, diante da persistência de alguns problemas, decidiu pelo comissariamento do mosteiro em abril de 2025 —medida apresentada como pastoral, não punitiva, mas necessária para auxiliar a comunidade.
A Ordem explicou que a comissária pontifícia, uma abadessa experiente, foi designada para guiar o mosteiro em diálogo com as monjas que aceitaram as decisões da Santa Sé. Já as religiosas que deixaram o local teriam feito essa escolha porque "não aceitaram o papel de vigilância e acompanhamento" que a Constituição Apostólica determina.
O comunicado ressalta que a comissária segue "totalmente disponível para atender também as monjas que deixaram o mosteiro". Além disso, reforça o compromisso para resolver a situação, seguindo as normas da Igreja e buscando o bem das monjas e da vida monástica.