Trump x África do Sul: por que acusação de genocídio branco não faz sentido

O presidente dos EUA, Donald Trump, acusou ontem o governo do presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, de promover um "genocídio branco".
Por que acusação não faz sentido?
Informações falsas sobre genocídio branco na África do Sul circulam entre grupos de direita há muitos anos. Sites que apoiam Trump promoveram a ideia inclusive durante o seu primeiro mandato, entre 2017 e 2021, segundo a rede britânica BBC.
Nem mesmo o partido que representa os africâneres e a comunidade branca do país denunciou até agora que um massacre esteja em andamento. Os africâneres são a minoria étnica descendente de holandeses, ses e alemães que imigraram no século 17. Em fevereiro, um juiz sul-africano também declarou em uma decisão que não há genocídio no país.
Em reunião com Ramaphosa, Trump exibiu vídeo que supostamente mostrava evidências do genocídio e disse que esperava receber uma "explicação". No entanto, durante o encontro na Casa Branca ontem transmitido ao vivo pelo governo norte-americano, Trump não apresentou dados oficiais.
Você permite que eles tomem terras e, quando eles tomam as terras, matam o fazendeiro branco, e quando matam o fazendeiro branco, nada acontece com eles. Donald Trump
Ao apresentar uma série notícias que, segundo ele, respaldam suas afirmações, o presidente americano destacou imagens de outro país. As cenas do vídeo corresponderiam ao trabalho de ajuda humanitária da Cruz Vermelha após mulheres terem sido estupradas e queimadas vivas durante uma fuga em massa da prisão em Goma, na República Democrática do Congo, segundo a Reuters. "Onde é isto?", questionou Ramaphosa, enquanto se mexia inquieto em sua cadeira.
Outra sequência trazia um parlamentar de extrema-esquerda cantando uma música da época da luta contra o apartheid. Julius Malema cantava "kill the Boer, kill the farmer" ("mate o colonizador, mate o fazendeiro", em tradução livre) na gravação.
Ramaphosa defendeu que há democracia no seu país e que, apesar de as posições de seu opositor Malema não serem as de seu governo, ele teria o direito a se manifestar. O vídeo terminava com cenas de um protesto na África do Sul, em que cruzes brancas instaladas ao longo de uma estrada rural representariam fazendeiros assassinados, mas Trump afirmou falsamente que seriam suas sepulturas, de acordo com a Deutsche Welle.
Trump acusou a África do Sul de confiscar terras de fazendeiros brancos e de alimentar a violência contra eles com "retórica odiosa". A África do Sul, no entanto, rejeita a alegação de que brancos são alvos desproporcionais de crimes.
As taxas de homicídio no país são altas, mas a maioria das vítimas é negra. Segundo a BBC, as estatísticas mais recentes sobre violência na África do Sul apontam para o assassinato de 6.953 pessoas no país entre outubro e dezembro de 2024. Delas, 12 foram mortas em ataques a fazendas, mas apenas uma era um fazendeiro.
Reforma agrária sul-africana foi estopim
O centro da polêmica é a política de reforma agrária e distribuição de terras da África do Sul. Apesar de o país ter abandonado o apartheid há 30 anos, a concentração de riqueza continua nas mãos da minoria branca —que representa apenas 7,3% da população total do país. Brancos ainda possuem três quartos das terras e têm 20 vezes a riqueza da maioria negra. Menos de 10% dos africâneres estão desempregados, em comparação a 30% dos negros.
Ramaphosa negou que o seu país esteja confiscando terras de agricultores brancos. O Ato de Expropriação aprovado em janeiro, segundo ele, pretende corrigir as desigualdades históricas do domínio da minoria branca. "Não, não, não, não, ninguém pode tomar terras", garantiu o presidente sul-africano. O Ministério das Relações Exteriores da África do Sul também reforçou a mensagem, garantindo que a atual istração não tem realizado confiscos.
A lei permite que o Estado realize a apropriação, sem compensação do dono, apenas em casos de "interesse público". O texto afirma que este seria o caso de terras improdutivas, abandonadas e sem registro, terras que pertencem ao Estado e não servem às suas "funções centrais", ou ainda terras cujos valores de mercado são equivalentes/inferiores ao investimento do governo. À BBC, o porta-voz do presidente, Vincent Magwenya, salientou à época que o governo não poderia "expropriar terra arbitrariamente ou para outro propósito" e isso só aconteceria se não houvesse "sucesso em acordo com o proprietário".
Trump garantiu que esta opção não será aceita pelos EUA e, com base em seu argumento de genocídio, anunciou a suspensão de todo o tipo de ajuda financeira ou programas sociais na África do Sul. O mais recente corte na ajuda para o país africano resultou em uma queda nos testes para pacientes com HIV.
Um primeiro grupo de 49 sul-africanos brancos desembarcou no último dia 12 de maio nos EUA, em uma operação organizada pelo Departamento de Estado. "Eles estão sendo mortos", afirmou Trump na ocasião. O grupo ganhou um status especial no governo americano, enquanto a Casa Branca suspendia a entrada de 100 mil refugiados de dezenas de países, muitos deles em guerra, e quase todos negros. A ONG Human Rights Watch classificou a medida, por isso, como "distorção racial cruel".
Outras razões que colocaram a África do Sul na mira de Trump
Um mês depois de Trump cortar os recursos que enviava à África do Sul, o embaixador sul-africano nos EUA foi expulso do país. Ebrahim Rasool, que é branco, foi acusado pelo Secretário de Estado dos EUA de "explorar questões raciais" e de "odiar a América e Trump". Rubio compartilhou um texto do site Breitbart, alinhado ao governo Trump, que afirmava que o embaixador teria dito que o presidente americano lidera um movimento de supremacia branca.
O bilionário Elon Musk, que comanda o Doge (Departamento de Eficiência Governamental, órgão não oficial do governo dos EUA), é sul-africano e tem interessem em seu país de origem. Presente na reunião, ele opinou que os sul-africanos brancos têm sido vítimas de "leis racistas de propriedade" e ainda disse que o país precisa de sistemas de telecomunicações da Starlink, sua empresa de internet via satélite, em todas as delegacias de polícia para combater a criminalidade.
Gaza também é pomo da discórdia entre África do Sul e EUA. O governo sul-africano fez uma denúncia contra Israel na Corte Internacional de Justiça, órgão da ONU em Haia, em dezembro de 2023, acusando o país de "atos genocidas" em Gaza. Os EUA são o maior aliado e fornecedor de armas aos israelenses.
*Com informações da AFP, Deutsche Welle, Reuters e de matéria publicada em 21/05/2025.