Homens pagam R$ 20 mil em curso para lidar com traumas e repressão sexual
Sexualidade, busca por afeto e questões emocionais são alguns dos motivos que levam grupos de homens, a maioria gays, a pagarem até R$ 20 mil no curso "Body&Heart" (corpo e coração, em tradução livre) — oferecido como "um convite a buscar conexão com a própria vulnerabilidade", por meio de terapias corporais de toque, desprendimento e compartilhamento de fragilidades.
Para alcançar esses objetivos, os grupos se reúnem em uma casa de 600 m² no bairro Sumarezinho, bairro de classe média alta na zona oeste de São Paulo, ou em um espaço maior e mais próximo da natureza, em Ilhabela, no litoral norte paulista.
O UOL visitou o espaço, a casa fica em uma rua discreta, arborizada, sem qualquer indício de que ali homens de diversas partes do Brasil e do mundo se reúnem para tratar traumas de infância, que vão desde conflitos familiares à sexualidade, autoestima e compulsões. O espaço parece uma realidade à parte da imensidão de concreto que é São Paulo, com ambientes verdes em que é possível ouvir até o canto dos pássaros.
Neotantra e ressignificação do sexo
O responsável por mediar os cursos é Daniel Bittar, 35, que se identifica como "facilitador de retiro". Bittar deixou o emprego como produtor de cinema para se dedicar, desde 2019, a cursos voltados à repressão sexual, compulsão por pornografia e outros traumas. Na época, ele buscava tratar o próprio consumo exacerbado de conteúdo adulto. ou dois anos viajando por templos na Índia, retiros em Bali, na Indonésia e na ilha tailandesa de Koh Phangan, conhecida como paraíso tântrico, para se aprofundar no neotantra, uma adaptação da prática espiritual milenar indiana.
O neotantra auxilia seus praticantes a ressignificar traumas e compulsões que afetam o comportamento e a vivência pessoal. "Neotantra é um processo terapêutico que inclui energia sexual e meditação", explica Bittar. Ele ressalta que "energia é tudo aquilo com que a gente pode se relacionar", e, no curso, ensina como canalizá-la para outras áreas da vida além da sexual.
O retiro mais recente foi realizado na primeira semana de maio para um grupo de oito pessoas — três de São Paulo e cinco vindos de outros estados. No dia da chegada, os participantes são recebidos por Dani, que, com o auxílio de um assistente, realiza um ritual de defumação. Em seguida, há a instrução para que fiquem nus, o que não é obrigatório, mas a maioria opta por se despir total ou seminu.
No curso, Bittar ensina a desconstruir o imaginário de que a energia sexual deve ser "expressa apenas no sexo". "Essa energia pode ser usada para melhorar relacionamentos, o trabalho, os objetivos de vida", diz.
Aprender a lidar com o sentir e com o toque é parte fundamental da terapia neotântrica. Ele afirma que muitas pessoas recorrem ao método "para limpar a sexualidade da mente, deixar a pornografia um pouco de lado e se conectar com o próprio corpo".
Essa experiência, diz ele, é um "desmame das externalidades para com seu próprio corpo", que ocorre de forma individual. "É preciso entender que o prazer está dentro de você e que é você com você mesmo, que não precisa da pornografia para lhe excitar, não precisa ter um homem com determinados aspectos para você se excitar, ou estar dentro de um roteiro predefinido para você poder se permitir".
Por se tratar de uma questão complexa, a ida a uma reunião ou apenas uma sessão não é suficiente para o "desmame", por exemplo, da repressão sexual ou da compulsão em pornografia.
Uma pessoa viciada em pornografia precisa de várias sessões, e isso varia de caso a caso. Em média, são de seis a oito meses de trabalho. Geralmente, começo com uma sessão por semana nos dois primeiros meses, depois o a uma por mês, até que, após um ano, pode-se fazer uma a cada seis meses, só para manter a energia e as conexões vivas.
Daniel Bittar
"O afeto é um artigo de luxo"
O psicólogo Rodrigo Mattos, 41, participa das "vivências do Dani" há cerca de um ano. Já esteve em três retiros, mas antes disso, integrava outros grupos. No retiro realizado no Sumarezinho, ele conta ter sido atraído pela forma como "sexualidade e afeto são abordados", de maneira acolhedora e direta, tocando pontos sensíveis para homens gays.
Mattos reflete que sexualidade e afeto são o "calcanhar de Aquiles" da comunidade LGBT+. "Superestimamos o sexo e subestimamos o afeto, que se tornou sinônimo de fraqueza nas relações. Essa polarização gera confusão, reforça o medo e alimenta ilusões sobre autoestima e relacionamentos. O trabalho com o grupo me ajudou a romper padrões de hiperssexualização e a descobrir no afeto um lugar genuíno de força e potência. O afeto é um artigo de luxo para os corpos que não se encaixam nos padrões ideais — e a cor com certeza é um desses fatores", conclui, como homem gay negro.
Sexualidade não é sexo
O escritor e produtor cultural Mário Frazão, 40, buscou o retiro após o término de um relacionamento doloroso. Ao UOL, relatou que enfrentava dificuldade em sentir interesse, inclusive sexual, por outras pessoas. "Estava melancólico e com a libido completamente difusa, perdida. Não conseguia me relacionar sexual nem afetivamente com ninguém", confessa.
Eu precisava de algo que me desse uma resposta mais rápida que a terapia convencional. Quis me jogar em uma prática nova que prometia um outro conhecimento da alma humana, diferente do psicanalítico. Eu queria sair da solidão e reencontrar minha libido.
Mário Frazão
O processo de imersão, por meio do sentir e da vulnerabilidade, permitiu a liberação de emoções que, segundo ele, não viriam à tona sozinho em casa. "O retiro me ajudou a compreender e sentir de forma plena, sem julgamentos."
"É importante entender que sexualidade não é sexo. Sexualidade é o corpo inteiro. Sentimos com o corpo todo, desejamos com o corpo todo. Depois do retiro, nunca mais tive uma relação sexual da mesma forma: toco o outro de maneira diferente, e não permito que me toquem fora de sintonia com o meu desejo. Parece óbvio, mas, no cotidiano, não é", afirma Frazão.
Embora parte do público dos retiros seja de homens heterossexuais, Bittar diz que a maioria se identifica como LGBT+. Esses homens compartilham experiências de rejeição familiar e dificuldades de se encaixar em uma sociedade que ainda marginaliza o que escapa da heteronormatividade.
"Todos nós temos feridas muito parecidas. Quando nos acolhemos e sentimos a dor do outro, criamos um espaço especial de conexão. São pessoas buscando autoconhecimento, controle emocional e cura de repressões."
Tratar traumas da infância foi o que levou o professor Henrique Rodrigues, 42, a buscar o retiro e sessões individuais mediadas por Bittar. "É uma experiência transformadora de entrar em contato com o que há de mais íntimo em você mesmo. Me vi diante dos meus traumas e percebi que precisava encará-los, não dava mais para escondê-los embaixo do tapete.
Especialmente para pessoas LGBTs, porque nós, gays, aprendemos que nossa sexualidade tinha que ser reprimida. Nós aprendemos que a nossa forma de amar é errada, ficamos com isso na cabeça, não nos aceitamos e isso gera traumas internos.
Henrique Rodrigues
Toques sensoriais
Tocar o outro como forma de fazer sentir é diferente de apenas refletir, ensina Bittar. Para ele, sentir começa no físico: no contato pele a pele, no abraço, no toque. "A partir disso, entendemos que há um universo de emoções com o qual geralmente não nos conectamos."
Nas reuniões, um dos exercícios terapêuticos envolve o grupo de homens, nus ou seminus, vivenciando toques mútuos. Alguns choram, outros gritam.
O facilitador afirma que esse exercício é importante porque "muitas vezes por pressões e opressões ", os homens, principalmente gays, têm dificuldade em se conectar plenamente com outras pessoas, sem ser pelo viés sexual.
Nada no retiro é obrigatório. Uma das premissas é respeitar os próprios limites. "A última coisa que queremos é que alguém saia traumatizado. O primeiro exercício é para perceber os próprios limites, algo que muitos de nós nem sabemos reconhecer."
Em meio aos toques, é natural que haja tesão, ereção e excitação, afirma Dani. "Ficar excitado faz parte do processo. O que ensinamos é que a excitação não precisa seguir um roteiro automático, como masturbação ou sexo imediato. Essa energia pode ser direcionada para o coração, para o afeto, para o corpo todo."
Relações sexuais podem ocorrer no retiro, mas não são o objetivo. "Se houver conexão significativa e desejo mútuo, pode haver espaço para isso, de forma ritualística. Mas o foco é observar e sentir a energia sexual, não reagir a ela. Com o tempo, sentir tesão deixa de ser algo desesperador e a a ser prazeroso, porque para muita gente sentir tesão é algo desesperador. Aí você abre o aplicativo de relacionamento, de sexo e acha que precisa resolver".
Bittar diz que ao final da terapia o grupo prefere focar no afeto, não no sexo. "Às vezes eu trazia o convite do, tipo, no final do retiro de cinco dias em Ilhabela perguntar: 'gente, vocês querem ir pra uma prática mais íntima, sexual?'. E a resposta era unânime: 'Dani, esse lugar de estar em afeto e sem esse tipo de tensão [sexual] está tão maravilhoso que não quero abrir mão disso, não quero ir para o sexo, porque sexo é uma coisa que tenho muito fácil, e poder estar abraçado com meus amigos, colegas, poder falar da minha vida, minhas dores e está nesse conforto, acolhimento é um negócio que não tem preço'".
Valores
Os preços variam. O curso de três dias em São Paulo custa a partir de R$ 2.500. Com acomodação na mansão, pode chegar a R$ 8.000. Em Ilhabela, o preço inicial é de R$ 5.000, e o pacote mais caro, por cinco dias com hospedagem, sai por R$ 20 mil.
As sessões individuais custam entre R$ 900 e R$ 1.500 (com até 4 horas). A continuidade da terapia tem sessões de até 2 horas por R$ 550. Sessões online saem por cerca de R$ 490.
Há descontos de até 80% para negros, indígenas, pessoas não binárias, trans e menores de 25 anos.
Além de São Paulo e Ilhabela, Dani Bittar realiza retiros em países como Grécia, Portugal, Malta e Tailândia. Também oferece workshops e atende casais heterossexuais que buscam reacender o desejo na relação.