PM morre em acidente após trabalhar 20 horas em SP; família cita cansaço

Um policial militar morreu após colidir a moto que pilotava contra a traseira de um caminhão na rodovia Régis Bittencourt, em Itapecerica da Serra, na região metropolitana de São Paulo. O acidente ocorreu enquanto o agente voltava para casa após a jornada de trabalho.
Familiares disseram ao UOL que o agente fez plantão noturno de 12 horas e depois teve que participar, por mais horas, de uma reunião do batalhão onde estava lotado, a 2ª Companhia do 37º Batalhão, na zona sul da capital, totalizando mais de 20 horas de trabalho. A família acredita que o número de horas trabalhadas pode ter contribuído para o cansaço do PM e, consequentemente, para o acidente. Uma sindicância foi aberta para apurar o caso.
O que aconteceu
Soldado Ronaldo Venâncio da Silva, de 33 anos, entrou no serviço às 19h de terça-feira (27). Segundo familiares, ele terminou o plantão noturno de 12 horas por volta das 07h30 de quarta, mas teve que ficar no trabalho para comparecer a uma reunião de batalhão, às 08h30. O encontro teria durado até às 14h40, quando o agente voltou para casa e ocorreu o acidente na rodovia.
Família afirma que Venâncio não dormiu, nem descansou durante todo o período de 20 horas. Eles ainda disseram acreditar que o agente pode não ter se alimentado adequadamente.
Documento aponta reunião do batalhão no dia que Venâncio morreu e também outros encontros marcados para os dias 3 e 4 de junho. Uma ordem de serviço, compartilhada pelo suplente de vereador Paulo Madalhano (Podemos), exige providenciar para a reunião "a apresentação de todos os policias militares sob o comando [do comandante da unidade], dividindo o efetivo para comparecimento nos três dias".
O texto, assinado pelo comandante do batalhão, ainda diz que é garantido um dia de folga posterior à reunião. A ordem ainda dispõe que cada policial deveria uma lista de presença elaborada previamente pela companhia da Polícia Militar.
"Queremos respostas", disse familiar, que preferiu não se identificar, ao UOL. Ele contou que a família quer saber se o agente foi obrigado a comparecer à reunião do batalhão mesmo após o plantão noturno.
Pelos comentários que vi nas redes sociais é bem comum acontecer [de os policiais estenderem o horário de trabalho]. Mas isso precisa parar porque quantos 'Venâncios' mais vão precisar morrer? Nossa família está desolada. Vamos velar e enterrar um homem que lutou pelo seu sonho até os últimos instantes.
Outro familiar do PM, ao UOL
Em nota no Instagram, o 37º Batalhão afirmou que o acidente ocorreu "quando [Venâncio] retornava para sua residência após jornada de trabalho". Eles não informam a duração do turno feito pelo agente. A publicação conta com diversos comentários citando as horas que o soldado ficou no trabalho: "Reunião após 12 horas noturnas. Deixou esposa e filho. Essa é a qualidade de vida que a polícia oferece aos seus funcionários?", escreveu uma pessoa.
PM de São Paulo disse que o comparecimento às reuniões mensais é obrigatório. Há restritas exceções em que a ausência é permitida, como o caso de agentes que estão de férias. "São reuniões intermináveis em que ficamos horas e horas [no local do encontro]", relatou à reportagem.
A Secretaria da Segurança Pública disse ao UOL que instaurou sindicância para "apurar todas as circunstâncias relacionadas ao fato". A pasta lamentou a morte do agente, classificada como "vítima de um acidente de trânsito". "A PM reafirma seu compromisso com a valorização e o bem-estar de todos os seus profissionais", concluiu.
A reportagem questionou a pasta sobre a denúncia da família sobre o número de horas trabalhadas pelo soldado e se o comparecimento na reunião era obrigatório, mas a secretaria não respondeu.
Colegas fizeram uma arrecadação para ajudar com as despesas do sepultamento do agente. O valor também seria destinado à esposa e o filho de Venâncio, já que o soldado mantinha a casa financeiramente. O enterro do agente ocorreu na sexta-feira (30) em Taubaté, no interior de São Paulo.
Venâncio era natural da Paraíba. Ele serviu no 15º Batalhão de Infantaria Motorizado do Exército em João Pessoa, e ingressou na corporação paulista em junho de 2023. Ele deixa esposa e um filho de nove anos.
Fatores diversos e extrapolação de jornada
Coronel diz que múltiplos fatores podem ter causado o acidente do soldado. Para o coronel da reserva Luiz Gustavo Toaldo Pistori, presidente da associação Defenda PM, ainda não é possível determinar que as condições de trabalho as quais Venâncio foi exposto teriam provocado o acidente.
Pistori disse à reportagem que a investigação é necessária para entender se o caso de Venâncio foi um caso isolado ou se é corriqueiro. Se for recorrente, acrescenta, isso pode causar riscos diversos na rotina dos agentes, incluindo o perigo ao conduzir um automóvel ou motocicleta. Ele explicou ao UOL que reuniões como as que Venâncio teve que comparecer são recorrentes e servem para rear ordens de serviço gerais ao efetivo e outros comunicados.
A gente sabe que uma escala longa como essa, gerando outra permanência no quartel [com a reunião] pode ter relação com [o acidente], com certeza. De certa forma, são fatores que podem ter colaborado para o resultado, infelizmente. Mas falar que isso foi determinante para que o fato acontecesse ainda não é possível.
A questão não é só a quantidade de horas trabalhadas, mas a qualidade das horas. Você ar 12 horas controlando um voo, tem um perfil. Agora você ar 12 horas numa área de risco, como é a área do 37º batalhão, que exige ao máximo a todo momento, a cada chamado é um grau de exigência muito alto, é outra coisa. Eu já trabalhei naquela região e a gente sabe como é.
Coronel Luiz Gustavo Toaldo Pistori
Extrapolação da jornada de trabalho de policiais militares, civis e de membros de forças de segurança de São Paulo é comum, diz delegado. André Pereira, presidente da ADPESP (Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo), reforçou à reportagem que o trabalho policial tem um alto nível de estresse e, quando você submete os agentes a escalas excessivas, além de contribuir para a deficiência na prestação do serviço de segurança pública, você coloca a vida dos agentes em risco.
O que tem que ser priorizado é a saúde do policial. Você não pode colocar à frente da saúde do agente uma determinação que pode ser cumprida em um momento anterior ou posterior ao descanso dele, ou até mesmo durante o turno de serviço em determinadas horas. É possível fazer isso com planejamento, olhando para a vida do policial. Mas, muitas vezes, a gente não tem esse olhar nas corporações.
André Pereira, ao UOL